Relembrar para não repetir: É preciso abrir os olhos para nossos vieses

Relembrar para não repetir: É preciso abrir os olhos para nossos vieses

Assim como nos olhos, temos um ponto cego nas decisões que tomamos: o viés. Para evitarmos vieses que nos levam a cometer erros e fazer escolhas equivocadas, precisamos desconstruí-los e criar novos pensamentos, novos sentimentos e novas posturas que nos ajudarão a tomar decisões melhores.

A revista Nature é uma das mais respeitadas dentro do meio acadêmico. Em um editorial publicado em setembro, o periódico fez um ato inédito: desculpou-se pela contribuição que teve para a disseminação do racismo. No texto, também admite que artigos recentes foram elitistas e sexistas. No mês seguinte, a Nature publicou uma edição especial inteira dedicada ao legado racista dentro da ciência.

A atitude é uma espécie de mea culpa. Quando a revista surgiu (1869), o Império Britânico era a maior potência colonial do mundo, sua população equivalia a um quarto da população da Terra. As ideias ali difundidas eram extremamente respeitadas, mesmo endossando conceitos de superioridade branca e europeia.

O imperialismo, autoritarismo, racismo e sexismo permeiam muitos artigos do arquivo histórico da ciência, um legado que, agora, a Nature e outras revistas científicas renomadas fazem esforço para expor. Sendo a ciência produzida por humanos que carregam uma série de vieses, os produtos podem ter ideias de seus contextos e podem levar consigo a bagagem de quem os faz.

Um exemplo que não pode ser esquecido: o experimento de Tuskegee. Foi um estudo extremamente antiético e racista e, por isso, influenciou o desenvolvimento dos comitês de ética no mundo inteiro. Trata-se de uma pesquisa que foi realizada no Alabama, nos Estados Unidos. O estudo começou em 1932 e pretendia investigar o comportamento da sífilis no corpo humano. Para os 600 voluntários, todos homens negros, foi dada em contrapartida a garantia de assistência médica gratuita.

Em 1943, a penicilina já era usada para tratamento da sífilis, mas nenhum dos 400 participantes do estudo que tinham a doença foi tratado com o medicamento. Eles não foram sequer informados do diagnóstico. Os pesquisadores apenas diziam que eles tinham “sangue ruim”. O experimento durou 40 anos. Nos anos 1950, algumas denúncias apareceram, mas foi somente em 1972 que o estudo foi encerrado, depois de ser amplamente noticiado na imprensa. Esposas contraíram sífilis e filhos nasceram com sífilis congênita por conta da má conduta dos cientistas que conduziram o experimento. Apenas 74 pacientes sobreviveram.

A história também nos mostra o quanto a ciência pode ser usada para reafirmar vieses preconceituosos: uma interpretação errônea da teoria da evolução de Darwin feita por seu primo, Francis Galton, o fundador do movimento eugenista, que influenciou políticas aplicadas ao redor do mundo, incluindo o nazismo.

Pode parecer que essa história ficou para trás, mas o racismo e o preconceito com outras identidades ainda se faz presente na ciência. Recentemente, uma pesquisadora indígena ouviu comentários racistas sobre seu projeto de pesquisa. Nadine Caron estuda terapia gênica voltada para povos indígenas do Canadá, pois o futuro da medicina é a medicina de precisão e, por isso, estudar o genoma de seu povo é essencial para que eles possam ter acesso aos tratamentos futuros.

Com a pandemia, mais um problema ficou evidente: algumas tecnologias médicas são feitas por e para pessoas brancas e, por isso, não funcionam corretamente em pessoas de outras etnias. Em um artigo publicado na própria Nature, uma equipe de cientistas mostrou que oxímetros não marcam a oxigenação correta em pessoas de pele negra por conta das células de pigmentação, pois elas interferem nos raios de luz emitidos pelo aparelho.

Ter poucos cientistas de minorias piora, e muito, essa situação. O Prêmio Nobel, o mais importante dado às áreas de ciências, foi entregue a apenas duas pessoas negras: um na categoria de economia e outro na de química. Ainda sobre o Nobel, não existem prêmios para pessoas indígenas e as mulheres têm apenas cerca de 5% dos prêmios.

Relembrar a história, e corrigi-la, portanto, é necessário. Cada vez mais, o papel dos cientistas é ter consciência do viés de preconceito que pode permear seu fazer científico. Hoje, há menos espaço para o comportamento preconceituoso, que contrasta fortemente com o objetivo de promover equidade, diversidade e inclusão que muitas áreas da ciência e empresas buscam implementar.

P.S.: The Good Doctor tem um episódio a respeito de viéses inconscientes racistas, “Irresponsible salad bar practices” (T4:E9).

Claudia Feitosa-Santana é neurocientista com pós-doutoramento pela Universidade de Chicago, doutorado e mestrado pela USP. Autora do livro Eu controlo como me sinto, ed. Planeta.

Esse artigo foi editado por Letícia Naísa, jornalista e pós-graduanda em divulgação científica.

Written by Feitosa-Santana

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